23 de janeiro de 2014

O Ilusionista


A fogueira queima lentamente no centro do nosso círculo, iluminando os rostos disforme e bruxuleantemente. Todos parecem meio assustados, meio temerosos. Admito, apenas para mim, que estou um pouco ansioso também. É impossível não entrar nesse bosque no meio da madrugada, sem lua ou estrelas no céu, apenas com uma fogueira para iluminar o ambiente, e não ficar nervoso. Ainda mais conversando sobre o que estamos conversando. Bem, no meu caso não é nervoso, apenas ansioso.
Raquel acabou de contar sua história. É a minha vez. Todos tinham que contar uma, fosse inventada ou (supostamente) real.
A história dela foi assustadora, tenho que concordar. Mas eles não fazem ideia de como é a minha. Ela é muito mais real.
Pigarreio, chamando a atenção de todos. Os sussurros somem na mesma hora. Sinto a curiosidade deles ao olhar para mim, a forma como estão intrigados. O único som que escuto é o crepitar suave da madeira enquanto queima, a fuligem se erguendo da fogueira. Vejo um ou outro começando a abrir a boca para falar, mas começo primeiro.
- A minha história é sobre uma lenda que talvez seja pouco conhecida, originada a não muito tempo, talvez cem ou duzentos anos, quem sabe. Provavelmente a maioria de vocês nunca ouviu falar dela, mas nem por isso deixa de ser real. Vou falar sobre uma história que aconteceu vinte anos atrás. Vou falar sobre “O Ilusionista”.
Respiro fundo e começo a contar:

O ar estava morno e parado, sem vento algum, formando um silêncio quase absoluto bem no meio da cidade. A madrugada estava avançada, o que tornava o fluxo de carros bem menor, contribuindo para o silêncio que chegava a ser assustador.
Furtivamente, cinco pessoas atravessam as ruas, andando rapidamente, sem correr. Quando chegam ao seu destino, param, olhando nervosamente ao redor.
“Cara, a gente não devia entrar aí”, fala um deles, um garoto alto e magro, com óculos no rosto e cabelos curtos e espetados.
“Para de ser medroso, Thiago, não tem nada, é só um parque”.
“É, e nem é tão grande assim”, uma voz feminina se manifesta. A dona dela é pequena, cabelos tingidos de vermelho escarlate, bem magra. “Tá com medo de ficar perdido aí, Thiaguinho?”, termina, em tom de gozação.
“Cala a boca, Thabata”, ele retruca.
A garota ri.
“São as histórias”, outro garoto fala. Ele é mais baixo que o Thiago, porém bem mais forte. “Ele acha que as histórias que ele lê são reais”
Todos começam a rir, menos aquele que é o alvo da zoação. Por trás dos óculos, os olhos de Thiago brilham de raiva.
“Afinal, Gabriel, estamos entrando num parque escuro, no meio da madrugada, justamente para contar histórias de terror, não é?”, outra voz de garota fala, dirigindo-se ao garoto forte. Ela, por outro lado, é toda cheia de curvas, bem delineadas e expostas pelo short curto e o decote da blusa, o cabelo preto e liso desenhando um dos seios.
Thiago abre a boca para falar, porém, é interrompido antes mesmo de tomar fôlego.
“Vocês querem parar de falar? Vão acordar a rua inteira assim”, era um terceiro garoto que falava, pouco mais velho que os outros, de olhar inteligente. “Chega, Amanda”, ele corta a garota morena.
“Ui, ele é quem manda por aqui”, ela responde, erguendo as mãos no ar. Todos riem.
“Eu estou mandando vocês calarem as bocas e pularem logo essa grade”, Guilherme responde.
Gabriel bate uma continência.
“Sim senhor, senhor. Batalhão, temos que obedecer às ordens do comandante Guilherme imediatamente”.
Guilherme, o de ar inteligente, dá um soco em Gabriel, que se defende e empurra o amigo para longe.
Rindo, todos eles escalam a grade do parque e logo estão do outro lado, não sem antes Thiago conseguir prender a perna da calça em uma das lanças do alto da grade e precisar da ajuda de Guilherme e Gabriel para descer, com um belo rasgo nos jeans.
Aos risos e cochichos, o grupo de amigos avança para o interior do parque.
Ainda que parecesse impossível antes, o silêncio se torna ainda mais intenso quando as árvores se fecham ao redor deles e todo e qualquer indício de civilização desaparece. O parque não tem trilhas, muito menos caminhos pavimentados. É, na verdade, um bosque com cercas ao redor.
Em finais de semana, seja em dias nublados, chuvosos, frios ou ensolarados, o bosque era sempre repleto de pessoas fazendo trilhas, piqueniques, se divertindo. Em uma quarta-feira às 5 da manhã, com os portões fechados, com certeza não havia ninguém lá. Ou pelo menos é o que quatro deles acreditavam.
Assim que as árvores escondem as evidências de que estão no meio da cidade, e não perdidos na mata atlântica, um arrepio percorre Thiago.
Talvez ele estivesse exagerando mesmo, como diziam os amigos, mas as histórias que se contavam, as lendas que envolviam pessoas sozinhas na mata de madrugada, eram numerosas demais, e eles estavam indo ali justamente para falar destas lendas, as quais ele conhecia todas, é claro.
Andaram por um bom tempo por entre as árvores altas que escondiam qualquer luminosidade da lua ou das estrelas, praticamente às cegas, tendo apenas um pequeno lampião como guia. Gabriel dissera que ajudava a entrar no clima da aventura, e Thiago o odiara intensamente no momento em que deu a ideia.
Todos ali já haviam andado muitas vezes pelo bosque, conheciam-no muito bem. Estavam indo até uma clareira que tornava possível um vislumbre da lua, que, naquele dia, estava na sua fase "nova" e não ajudaria em nada mesmo que seu brilho pudesse atravessar as folhas densas.
Pelo menos não corremos o risco de encontrar lobisomens, mas há muitas coisas que surgem na lua nova, fantasiou Thiago, apenas em pensamento. Se dissesse isso em voz alta com certeza seria zoado para o resto da sua vida.
Por mais que nunca tivesse visto nada, Thiago acreditava ferrenhamente que todos os monstros que já apareceram em uma história eram reais. Bem, não todos. Algumas coisas são absurdas demais até para ele, contudo, em relação ao resto, ele era adepto da filosofia "se não pode provar que não existe, é porque existe". Uma lógica falha, mas tal fato fugia à sua percepção.
Depois de um bom tempo caminhando, finalmente chegaram à clareira. Em duplas e silenciosamente, ocuparam-se em recolher galhos e gravetos para uma fogueira.
- Alguém trouxe fósforos? - veio a pergunta de Amanda.
Todos se olharam lentamente, percebendo que tinham esquecido apenas o essencial, quando, de repente, uma luz azul se acende na escuridão.
- Pra que fósforos se tenho meu brinquedinho?
Gabriel tirara um daqueles isqueiros com tampa do bolso. Manipulou-o agilmente por entre os dedos, fazendo malabarismos com ele, até que, em alguns segundos, as chamas se espalharam pelos galhos.
Meia hora depois, o fogo ardia lentamente no centro. Era proibido acender qualquer tipo de chama ali, eles sabiam, mas o bosque não tinha vegetação rasteira, por isso as chances de provocarem um incêndio eram baixas, e com certeza não tinha ninguém para vê-los.
De repente, quando todos estavam de olhos fixos no fogo, um brilho forte e azulado se acendeu. Todos se sobressaltaram. Em seguida, veio a risada baixa de Guilherme.
“Não podia faltar justamente a lanterna, não é?”, disse ele, com o rosto iluminado de baixo para cima.
Os outros o acompanharam. Um pouco nervosos, porém.
“Lendas urbanas...”, tornou Guilherme a falar, em um tom meio sombrio e baixo, pouco acima de um sussurro. “Quem nunca ouviu uma, não é?”, seus olhos passavam por cada um dos seus amigos enquanto falava. “Quem nunca temeu uma?”.
“O Thiago tem medo de todas elas”, Gabriel soltou. As duas garotas riram. O outro garoto apenas estremeceu levemente.
Guilherme, entretanto, olhava de uma forma estranha para o amigo, uma forma intensa, que o fez se arrepiar outra vez.
Um sorriso enviesado tomou forma nos lábios do garoto que narrava.
“Ele com certeza é muito mais esperto que qualquer um de vocês três. Ou acham que a escuridão não oculta nada que devemos temer?”.
Instintivamente, as garotas olharam para os lados, tentando penetrar as sombras que vulteavam por todos os lados. O fogo pareceu brilhar um pouco menos, como se fosse subjugado às forças das trevas.
“Estamos aqui, no meio da mata, com apenas uma lanterna, um lampião e uma fogueira, na hora mais escura da noite, aquela que antecede o alvorecer, onde as criaturas das trevas são mais fortes, e vocês acham mesmo que não há nada que precisam temer, logo ali, escondido na mata, além do alcance de nossas luzes?”.
Uma leve brisa sacudiu o ar parado e fez bruxulear a fogueira, como que dando ênfase às palavras de Guilherme. Nem Gabriel parecia tão corajoso como quando pularam a grade. Apenas Guilherme parecia despreocupado, escondendo suas emoções atrás de um sorriso estranhamente encorajador e de um olhar intenso, quase faminto. Thiago havia visivelmente começado a suar.
“Lendas sobre criaturas que transcendem a realidade, coisas que deveriam habitar apenas o imaginário, existem desde o momento em que o ser humano descobriu a existência do medo. De onde surgiram essas lendas? Será que foram todas inventadas? Ou será que cada uma delas nasceu a partir de fatos?”.
Um tremor involuntário percorreu o corpo de Amanda, que se aproximou mais do fogo e abraçou os joelhos.
“Eu acredito que todas elas têm seu fundo de verdade. Com certeza foram modificadas com o passar dos anos, mas quem aqui tem coragem de entrar em um banheiro, dar a descarga três vezes e dizer três palavrões sobre o vaso sanitário e depois olhar no espelho para ver se a loira do banheiro aparece?”
Thabata estava com uma cara de que nunca mais iria ao banheiro sozinha, enquanto Thiago respirava tão profundamente que era óbvio que se esforçava para se controlar. Se estivessem todos em um quarto bem iluminado, na segurança de suas casas, todos estariam sorrindo desdenhosamente para Guilherme, mas eles já tinham ouvido várias lendas urbanas, inclusive algumas envolvendo aquele local, e cada um deles acreditava em algumas delas.
“Eu, particularmente”, continuou aquele que parecia o único que conseguiria fazer a voz sair, “gosto muito de uma lenda sobre este bosque”. Thiago deixou escapar um gemido estrangulado
“Querem ouvir?”.
Ninguém respondeu. Era óbvio que não queriam, apenas pelas suas expressões. Mas afinal, não era esse o intuito daquela reunião? Só que planejá-la havia sido muito mais empolgante e despreocupado do que efetivamente estar ali.
Guilherme, lentamente, levantou-se, de lanterna na mão, e começou a percorrer o círculo iluminado pela luz da fogueira. Cada vez que um graveto quebrava ou uma folha era esmagada, Thiago se encolhia.
“A lenda conta sobre uma garota que, um dia, saiu para passear pelo bosque sozinha, afastando-se de seus pais sem que eles percebessem, e então se perdeu aqui e ficou presa quando o anoitecer caiu. Tremendo de frio e medo, caminhou por horas, sem encontrar nada nem ninguém, até que viu uma luz e a seguiu. Quando chegou ao ponto, encontrou um grupo de jovens, como nós, que estavam sentados conversando. Porém, ao contrário de nós, estes jovens tinham uma índole má. A garota não devia ter mais do que treze anos, começava a formar seu corpo, ao contrário de algumas garotas de hoje em dia”.
Guilherme olhou maliciosamente para Amanda, que subiu mais a blusa, escondendo os seios. Sua lanterna varria as árvores aleatoriamente, indo além da luz do fogo. Os olhos de Thiago, vidrados, acompanhavam o facho de luz.
“Ela falou com eles e perguntou se podiam ajudá-la a reencontrar seus pais. Era uma garota inocente, não entendeu o significado dos olhares que lançavam a ela, dos sorrisos repugnantes”.
"Eles acabaram abusando da garota, e depois a mataram. Cinco noites depois, várias pessoas foram encontradas mutiladas, e por mais que ninguém soubesse da ligação entre os casos ainda, não demoraram a perceber que eram alguns jovens que haviam desaparecido dois dias depois da garota sumir. Os pedaços eram tantos que tiveram dificuldade em descobrir quantos corpos eram, e só conseguiram quando contaram o número de orelhas”.
Um arfar alto e abafado escapou dos lábios de Amanda. Guilherme continuou como se não tivesse notado.
“Sabem onde encontraram os corpos?”.
Os olhos dos três se arregalaram, todos querendo que ele não dissesse o que estava prestes a dizer.
“Exatamente nessa clareira".
"Foi meu pai quem me contou essa história. Desde este dia, décadas atrás, qualquer pessoa que fica neste bosque depois do anoitecer é encontrada por ela, esteja perdida ou não. Então a garota a mata. Muitos já desapareceram aqui, sabiam? Alguns nunca foram encontrados. Aqueles que foram... bem, vocês podem imaginar o estado em que estavam”.
Thabata e Amanda se abraçaram com força, esquecendo-se completamente de tentar ocultar o medo. Gabriel tentava parecer corajoso, mas estava tão duro que parecia que nunca mais levantaria dali.
Guilherme tornou a se sentar em frente à fogueira, desfez o sorriso e falou em um tom normal, o que ajudou a quebrar o clima de tensão.
“E vocês, qual a lenda de que mais gostam?”.
Vendo que os outros não falaram nada, Gabriel se prontificou a contar, ainda tentando parecer corajoso.
“Blood Mary. Longe de um banheiro é difícil acreditar, mas já tentou dizer isso três vezes na frente do espelho com as luzes apagadas? Eu travei na segunda vez, não consegui dizer por nada nesse mundo a terceira”.
Guilherme riu.
“Eu morro de medo de lobisomens”, admitiu Amanda.
“Vocês já ouviram falar da lenda do demônio de olhos amarelos?”, pergunta Thabata.
“Qual, aquela que aparece em Supernatural?”, indaga Gabriel.
“Essa mesma. A série se inspirou numa lenda urbana. Dizem que ele mata suas vítimas com fogo, as queima até virarem cinzas”.
“A Blood Mary é mesmo assustadora", Guilherme torna a falar "tão sanguinária quanto nossa amiga aqui do bosque, mas não tenho muito medo de demônios e lobisomens. Vocês sabiam que havia tanto sangue espalhado pela clareira que, dizem, até hoje têm manchas nas pedras?”
As duas garotas e Gabriel olharam em volta, procurando uma pedra para verem se aquilo era verdade. Thiago, porém, olhava fixamente para um local vários metros para trás de Guilherme. Quando este falou, ergueu o braço da mão que segurava a lanterna, apoiando-o no joelho, e o queixo na mão. Thiago olhava fixa e aterrorizadamente para o ponto onde o facho da lanterna iluminava. Sua boca foi lentamente se escancarando enquanto seu cérebro processava o que ele via.
Guilherme parecia não notar, procurando por pedras no chão para provar o que havia dito, a lanterna ainda apontada para o mesmo lugar. Os outros, porém, viram a expressão de Thiago, pois estavam de frente para ele, e seguiram seu olhar.
Congelaram no mesmo instante, as respirações presas nas gargantas.
Lentamente, por entre as árvores, um vulto branco se aproximava, balançando de um lado para o outro, na luz fraca da lanterna. Seus passos eram descompassados e leves, cambaleantes. A cabeça de cabelos loiros estava pendurada na frente do corpo.
“Achei!”, Guilherme exclamou de repente, erguendo uma pedra suja de marrom em um dos lados e baixando a lanterna ao mesmo tempo.
Gabriel precipitou-se rapidamente à frente, tomou a lanterna das mãos do amigo e apontou-a para o ponto que estava iluminando antes.
Um olhar assassino, emoldurado por cabelos longos e escorridos retornou o seu trêmulo e apavorado. A garota estava vários metros mais perto do que segundos antes, na borda do círculo de luz da fogueira. Vestia um vestido branco e rasgado, sujo de sangue. Suas mãos brilhavam, escarlates.
“O que está...”.
Guilherme começou a perguntar, sendo interrompido por um longo e cortante grito de Gabriel.
As garotas foram despertadas pelo pavor do som e gritaram também. Os três se levantaram o mais rápido que puderam, tropeçando e caindo no ímpeto de fugir. Thiago, por outro lado, estava completamente paralisado, os olhos fixos nas mãos sangrentas da garota de branco.
Quando Amanda, Thabata e Gabriel finalmente conseguiram se levantar e começaram a correr, outro som quebrou o silêncio da noite.
Os três param de repente, virando-se, esquecendo-se do motivo de estarem correndo, porque aquele era a última coisa que esperariam ouvir naquele momento.
Uma risada. Mas não uma risada qualquer, e sim uma gargalhada daquelas que se dá quando se ouve uma piada espetacular.
Gabriel olha para Guilherme se contorcendo no chão, então olha mais atentamente para o espírito que deveria estar ali para matá-los e vê que ela sorri. No instante seguinte, reconhece-a.
“Marcelle...?”, alguns segundos depois ele processa a informação completa. “Guilherme, seu desgraçado!”.
Gabriel sai correndo e pula em cima do amigo, dando vários socos nele. Guilherme se defende e, rapidamente, imobiliza o outro, ainda rindo. Depois de algum tempo se debatendo, Gabriel se rende. O corpo se descontrai e um sorriso aparece em seu rosto.
“Seu filho da mãe! Seus dois filhos da mãe. Eu pensei que fosse morrer!”.
Duas outras risadas cortam o ar silencioso da floresta. Eles estão se esquecendo da hora e do local em que estão. As garotas caíram na gargalhada também. Amanda dobrou-se em dois e Thabata estava apoiada em uma árvore.
“Eu quase me mijei de medo!”, a ruiva falou.
“Eu achei que fosse é morrer de medo, antes que qualquer coisa conseguisse me matar”.
Um som abrupto fez todas as risadas cessarem. Thiago havia se levantado do chão, deixando cair o lampião, que se apagou.
“Vocês são loucos?!”, falou, quase gritando. “Não sabem que não se deve brincar com essas coisas? Não se deve tirar sarro de lendas urbanas! Isso só os faz ficarem mais furiosos! Vamos ter muita sorte se essa garota não acabar aparecendo agora”.
Os outros cinco estavam parados, perplexos, olhando para o amigo. Em seguida, desataram a rir novamente, todos de uma vez. Thiago ficou parado no meio da clareira, a fogueira a iluminá-lo por baixo.
Guilherme, depois de alguns segundos, conseguiu tomar fôlego para voltar a falar.
“Você é meio retardado mesmo, né, Thiago? Não existe nenhuma garota que morreu aqui e voltou para matar os caras. Eu inventei toda a história”.
Thiago parecia decidido a não desistir.
“Mesmo assim, existem seres que matam justamente aqueles que zoam as lendas!”
“Ah, Thiago, cala a boca vai”, Gabriel respondeu, bem mais relaxado do que antes. “Essas porcarias não existem”.
O garoto de óculos abriu a boca para falar outra vez, pareceu mudar de ideia, então a fechou novamente. Parecia ter percebido que nada do que falasse mudaria alguma coisa. Seu rosto estava sério, como se tivesse tomado uma decisão.
Todos tornaram a se sentar ao redor da fogueira, bem mais relaxados, exceto Thiago, é claro. Ele, relutantemente, sentou-se um pouco mais longe de todos, de cara fechada, encarando as chamas.
“Vocês precisavam ver a cara que fizeram!”, Marcelle, a garota que fingira ser o espírito, disse. “Acho que nunca vi ninguém com tanto medo quanto vocês”, ela riu novamente. “Catchup?”, ergueu as mãos, depois começou a limpá-las no vestido.
A conversa se tornou bem mais descontraída depois disso, e também mais alta. O único que não estava à vontade era Thiago, que continuava encolhido, afastado, lançando olhares furtivos para as árvores.
Guilherme puxou alguns pacotes de salgadinhos de sua mochila e distribuiu entre os amigos, que, felizes, começaram a comer ruidosamente. Thiago recusou a comida, encolhendo-se ainda mais com o aumento do volume de barulho que estavam fazendo.
Ele parecia o mais louco de todos, só que não. Realmente era o único sensato ali.
Um estalo no meio das árvores, um sobressalto, tudo passado despercebido. Os olhos do garoto se apertaram e concentraram ao máximo, tentando por tudo vencer a escuridão que havia por entre os troncos. Ele não conseguia ver nada, contudo, nem um movimento, nada. Seu coração estava acelerado, retumbando no peito. Os outros não notaram nada de diferente, absortos nas conversas e risadas. Começaram novamente a falar sobre lendas urbanas, mas não contavam mais as histórias. A constatação de que a garota que pensaram ser a da lenda contada por Guilherme era a amiga deles, Marcelle, pareceu ter tirado o medo de todos, que falavam despreocupadamente sobre as histórias, satirizando-as, provocando os seres que habitam a escuridão.
Thiago começou a produzir ruídos sem sentido. Cada vez mais o medo entranhando-se em sua mente, sua alma, seu ser.
Quando aconteceu, foi tudo muito de repente, muito rápido.
Um vento, uma sombra, um farfalhar desconexo como se algo vasto e invisível atravessasse o ar muito rapidamente.
No instante seguinte, tudo voltara ao normal.
Os olhos de Thiago estavam arregalados, quase saltando das órbitas. Os outros não pareceram perceber nada, estavam falando mais alto do que nunca, gargalhando histericamente como se estivessem seguros em suas casas.
“Calem a boca!”.
Subitamente, Thiago gritou. Estava de pé, sem se lembrar quando foi que se levantou. Os outros, assustados com a reação súbita do garoto, calaram-se instantaneamente.
Thiago olhava fixamente para frente, para o ponto onde achava que tinha visto a sombra. Seu coração parecia estar sendo tocado por um exímio baterista. A respiração saía em arquejos fracos, incapaz de colocar oxigênio suficiente para dentro de suas veias. Sua visão embaçou momentaneamente, fazendo-o cambalear um ou dois passos. Piscou com força, desesperando-se ainda mais com a possibilidade de desmaiar bem ali.
“Você é louco, não é?”, Guilherme perguntou. Todos estavam olhando para Thiago, ainda. Nos rostos as expressões iam do medo à descrença, passando pela ironia e pena.
“Eu sou louco? Eu?!”. Thiago estava ficando histérico. “Vocês estão aí, feito um bando de retardados, tirando com a cara de todas as lendas urbanas que podem se lembrar, e acham que é a coisa mais normal do mundo!”. Suas mãos estavam geladas, fechadas em punhos enquanto falava, esforçando-se para não deixar a voz afinar devido ao medo. “Eu vou embora daqui. Vocês terão sorte se voltarem para casa”.
Ninguém conseguiu pensar em nada para falar. Para eles, a situação era tão ridícula que realmente ficava difícil dar uma resposta à “loucura” do amigo.
Mas mal Thiago tinha dado três passos, estacou, o olhar fixo à frente. Um segundo depois, recuou rapidamente, de costas, tropeçou em uma pedra e caiu pesadamente no chão.
“Ah, qual é, Thiago”, começou Gabriel, “vai nos dizer agora que está vendo alguma coisa? Você é um cagão mesmo”.
“Vocês mataram a gente. Vamos todos morrer...”, o garoto falou, as palavras se perdendo, fugindo do sentido lógico. “Estamos todos mortos”.
Os outros estavam totalmente descrentes. Ainda assim, Guilherme acendeu novamente a lanterna e apontou para o ponto onde fixava-se o olhar de Thiago. O facho de luz passou entre dois troncos de árvores. E não se perdeu na escuridão além.
Veias vermelhas corriam pelo branco de um par de olhos vidrados e arregalados, emoldurados por cortinas negras de cabelos emaranhados, que desciam, revoltos, por cima de um vestido de linho branco. Várias manchas de sangue fresco se espalhavam por ele em vários pontos. Dos dedos, mais sangue pingava, como se as mãos estivessem em uma vasilha cheia dele um segundo antes. Ou então tivessem rasgado alguém um segundo antes.
Uma gota de sangue brilhou com a luz do fogo antes de cair no chão.
Um grito grave e alto destruiu o silêncio. Guilherme se levantou correndo, sem nenhum vestígio da presunção anterior, de toda a sua confiança. Estava completamente apavorado. Deixando os amigos para trás, disparou na direção das árvores. Antes que pudessem chegar até elas, porém, a garota desapareceu de onde estava e reapareceu na frente dele. Guilherme parou derrapando, inverteu a direção e disparou novamente, porém, outra vez, foi interceptado pela garota. Um sorriso, muito mais um esgar, na verdade, distorceu a boca dela. Estava se divertindo com o pânico do garoto.
Thiago balbuciava, sem sentido, e antes que alguma outra coisa acontecesse, sumiu por entres as árvores, cambaleando.
As garotas tinham se agarrado, ainda sentadas no chão, e Gabriel estava completamente atônito, sem parecer ver o que estava acontecendo ao seu redor.
Guilherme parou de tentar correr e foi apenas se afastando, trêmulo, enquanto a garota se aproximava dele, ainda com aquele macabro sorriso no rosto, até que desapareceu.
O garoto olhou para os lados, procurando-a, e então congelou. Virou-se abruptamente e deparou-se com aqueles olhos cruéis a centímetros dele. Antes que pudesse gritar, antes que pudesse fazer qualquer coisa, ela se moveu.
O único som que Guilherme conseguiu produzir foi uma exclamação de espanto, como se tivesse levado um susto. Sua cabeça baixou lentamente, os olhos percorrendo todo o caminho do rosto da garota, passando pelo braço e chegando à mão. Ou tentando chegar, pois ele não podia vê-la, já que ela estava dentro dele.
Seu sangue manchou rapidamente a roupa e começou a escorrer pelo braço dela, que, rindo, subiu a mão, dentro da barriga de Guilherme, torcendo-a.
Essa foi a última coisa que os outros viram. No instante seguinte estavam gritando e correndo para o meio das árvores, Amanda e Thabata precisando arrastar Marcelle para impedi-la de correr para Guilherme.
Menos de um minuto depois, o brilho da fogueira tinha desaparecido. Estavam mergulhados na total escuridão. Continuaram a correr, querendo se afastar ao máximo da clareira e do espírito da garota, onde o amigo deles morria.
Uma das garotas tropeçou, soltando um grito, levando as outras juntas.
Gabriel percebeu, mas não parou de correr. As garotas estavam sozinhas. Quando todas conseguiram ficar finalmente em pé, não há mais vestígios do outro amigo em lugar algum, nem mesmo um som. Olharam a volta, sem saber de onde tinham vindo, para onde estavam indo, sem conseguir enxergar nada além de alguns poucos metros à frente, com muita dificuldade.

Enquanto isso, Gabriel não parou de correr. Precipitou-se pelas árvores cegamente, esbarrando com força nelas, indo ao chão várias vezes. Depois de correr por quase cinco minutos, teve que parar. Sua cabeça rodava com a falta de oxigênio e seu corpo doía depois de tantos encontrões e quedas.
Lembrou-se, de repente, do isqueiro em seu bolso. Pegou-o e o acendeu. A chama brilhou solitária em meio a um mar de trevas, sem se mover.
Com a chama mais a lhe cegar do que iluminar, Gabriel avançou, cambaleante. Após poucos passos, um brilho repentino lhe chamou a atenção. Paralisou-se. Alguns segundos de tensão depois, moveu o isqueiro no ar, tentado enxergar o que poderia ter brilhado. O brilho se repetiu, e dessa vez ele conseguiu ver de onde vinha.
Andou hesitantemente na direção da luz intermitente, temendo o que poderia encontrar.
Quando todas as árvores desimpediram seu caminho, percebeu que era uma chama. Quanto mais se aproximava, mais estranho aquilo lhe parecia. A chama estava na mesma altura que a sua, e parecia tão idêntica... Seu cérebro não conseguia processar aquilo. Se não estivesse perdido no meio de uma floresta, diria que aquilo era um espelho. Mas como podia ser possível?
A um metro de distância, parou. Seus olhos brilhavam com a luz imóvel de seu isqueiro, ambas refletidas para ele por um espelho que flutuava no meio do ar, sem apoios visíveis.
Antes que o garoto pudesse processar qualquer coisa a respeito da impossibilidade disso, viu que não estava mais sozinho no reflexo.
O ar ficou preso em sua garganta quando a garota, toda coberta de sangue, avançou para ele, e a única coisa que conseguiu pensar foi em seu nome: Bloody Mariy, Em seguida veio o grito.

Um som cortante chegou até onde as garotas estavam, um grito vindo do meio da escuridão. Marcelle começou a chorar. Seu corpo se sacudia com os violentos soluços, e por mais que tentasse manter silêncio, estava fazendo muito barulho.
“Shh, mais baixo, Marcelle, por favor”, falou Thabata, abraçando a amiga, tentando acalmá-la.
“O Guilherme”, Marcelle se esforçou para dizer entre um soluço e outro, “o Guilherme... ele está, está morto...”.
Lágrimas começaram a descer pelo rosto da Amanda também, mas estas eram silenciosas, e graças à escuridão, ninguém além dela tomou ciência disso.
De repente, um som chega até elas. As três se agarraram umas às outras, o pânico atingindo níveis astronômicos, até que notam uma luz cambaleante por entre as árvores. Era Thiago.
“Precisamos continuar”, ele falou urgentemente, “Temos que sair daqui, senão vamos todos morrer”. Em uma das mãos, carregava o lampião que havia deixado cair e se apagar.
O choro de Marcelle aumentou de intensidade. Thabata olhou de cara feia para o garoto. Amanda, porém, sabia que ele estava certo. Tinham que sair logo dali.
“Vamos, temos que encontrar a saída”, a garota morena pegou no braço das amigas com mãos trêmulas e tentou fazê-las se moverem. Depois de quase dois minutos de insistência, eles finalmente começaram a andar.
Thiago vai à frente, iluminando o caminho. Na quase completa escuridão, cheios de terror, eles estavam tendo dificuldades em se localizar. Haviam corrido à esmo pela mata, e podiam estar ainda mais longe das entradas.
Caminharam por mais de meia hora sem encontrar nada, sem ouvir um único som.
“E o Gabriel? A gente tinha que encontrá-lo, não?”, Amanda perguntou para ninguém em especial.
“E se a menina tiver o encontrado também?”, desesperou-se Thabata.
Marcelle começou novamente a chorar, cobrindo a boca com as mãos para abafar o som.
“Quietas, todas vocês!”, Thiago explodiu em voz baixa. Por mais que fosse quem mais tivesse medo de lendas urbanas antes, parecia ser o que estava melhor administrando a situação. "Acho que ouvi alguma coisa".
As três congelaram na mesma hora, paralisadas de medo, tentando escutar alguma coisa. Um galho parecia ranger levemente mais à frente, como se alguém estivesse em cima dele. O silêncio era tão profundo, sem um único farfalhar de folhas, que aquele tênue som (o único além das respirações entrecortadas deles) se destacava gritantemente. Thiago apontou para o alto das árvores e as garotas lançaram olhares amedrontados para cima, girando para tentar enxergar alguma coisa no alto, sem se afastarem umas das outras.
Thiago incitou-as a andar, o mais devagar possível, segurando o lampião bem alto para que sua luz fraca iluminasse a maior área possível.
Em certo momento, ele fez sinal para que todas parassem. Diminuiu a luz do lampião até que ela quase se apagasse, e na escuridão que se seguiu, conseguiram distinguir uma difusa luz azul bruxuleando mais à frente, bem perto do chão.
Seguiram em direção da luz, todos pensando nas terríveis histórias de criaturas que usavam luzes para atrair pessoas perdidas em matas para se alimentarem delas.
O ranger do galho continuava ritmicamente, hipnoticamente, na mesma direção de onde vinha a luz.
Quando ultrapassaram as últimas árvores que os separavam, entraram em uma pequena clareira de onde poderia se ver retalhos do céu, caso fosse uma noite com lua. Os garotos perceberam que a luz provinha de uma pequena chama azul no chão, que se agitava levemente, ainda que eles não sentissem vento algum.
O fogo era azul e com um formato definido; logo se via que não era uma tentativa de fogueira. Na clareira, o ranger do galho era mais alto.
Com uma terrível sensação de reconhecimento, Thabata arrancou o lampião das mãos de Thiago e aumentou sua luz.
Um grito, som de vidro se quebrando, e novamente a luz do lampião se apagou quando ele caiu no chão. O cheiro de querosene se espalhou pelo ar.
Gabriel estava pendurado no ar, de cabeça para baixo. Sangue escorria pela sua testa enquanto ele balançava de um lado para o outro como um pêndulo.
“Meu Deus, Gabriel!”, Thabata exclamou, muito mais alto do que seria sensato. "Rápido, me ajudem com ele, por favor!".
 A garota estava desesperada, tocando a esmo o corpo do garoto pendurado, sem saber como tirá-lo dali.
“Alguém tem uma faca? Precisamos cortar a corda”.
Nenhum dos outros havia se mexido ainda.
“O que é que há com vocês?”, a garota exasperou-se.
Amanda levantou uma mão e apontou para o céu.
“Hoje é lua nova”.
“E? O que é que isso importa?”.
A Amanda não respondeu, apenas continuou a apontar e olhar para o céu.
Cedendo, Thabata levantou o olhar.
Uma lua cheia, gorda, brilhante, enorme e meio amarelada, cercada por um halo de nuvens que projetavam sua luz, fazendo-a parecer ainda maior, brilhava no céu.
Antes que Thabata pudesse arfar, um uivo cortou o ar. Era alto e gritante, cheio de ódio e crueldade.
Marcelle gritou e se encolheu no chão, Thabata deu um passo para longe de Gabriel, e no segundo seguinte, viu um par de olhos amarelos brilhando no alto, no lugar onde estaria o galho que prendia o garoto.
Ela gritou, tropeçou e caiu para trás. No segundo seguinte, impossivelmente, a chama do isqueiro de Gabriel aumentou centenas de vezes de tamanho, rugindo como uma enorme fogueira e envolvendo todo o tronco de Gabriel. A garota gritou outra vez e tentou fazer alguma coisa, mas em segundos o corpo do menino já tinha sido envolto em chamas. Ele se sacudia e gritava, ardendo como uma tocha.
O uivo tornou a singrar o ar, mais alto, mais próximo. Amanda e Marcelle seguraram os braços da amiga e tentaram fazer com que andasse, mas ela não se moveu. Estava travada no chão, os olhos fixando algo além de onde o amigo gritava e se contorcia.
Um par de olhos amarelos se aproximavam, brilhando, pela escuridão. As outras duas garotas também viram. Tomadas por um pânico irracional, correram para longe da clareira, abandonando a amiga, o vulto negro aproximando-se cada vez mais dela.
Correram até que o som do fogo desaparecesse, tentando correr até que os gritos cessassem, mas o som da voz de Thabata seguiu-as ecoou como uma maldição pelo ar. Só depois de estarem muito longe da clareira, pararam. Pontadas agudas perfuravam os pulmões e as cabeças rodavam. Depois de quase um minuto paradas, notaram o que estava faltando.
“Onde está o Thiago?”.
Marcelle olhou ao redor, tentando responder à pergunta da Amanda.
“Ele deve ter ficado na clareira também, ou então correu antes, sem que a gente percebesse”.
“Espero que ele esteja bem...”, Amanda respondeu, estremecendo. “Vamos, não podemos ficar paradas, temos que sair daqui”.
Marcelle, ao invés de andar, caiu no chão, voltando a chorar.
“Vamos morrer, Amanda... Vamos morrer como eles”.
Os soluços sacudiam seu corpo enquanto ela abraçava os joelhos.
Amanda se aproximou rapidamente da amiga e acertou um tapa em seu rosto. O som estalou pelo ar e a outra garota parou de chorar na mesma hora.
“Nós não vamos morrer, Marcelle. Não vamos! Agora levanta e vamos embora daqui!”.
Uma respiração pesada e arfante. Um movimento, um salto, um estalar de mandíbulas e ossos. Marcelle gritou quando algo grande e cheio de pelos arrancou a amiga da sua frente.
Os olhos da Amanda estavam vidrados, sem entender direito o que estava acontecendo, ainda sem perceber a dor. Ela caiu com força no chão quando a besta a soltou. Seus olhos se fixaram na fera acima dela, um homem com formato de lobo, ou um lobo com formato de homem, impossível saber, porém muito maior que os dois juntos.
O seu grito foi alto e lancinante, daqueles que só se ouve em filmes, tão cheio de pânico e terror que qualquer um que o ouvisse sentiria medo também.
No segundo seguinte ele foi silenciado pelo arrancar de sua cabeça.
O sangue jorrou para todos os lados, brilhando à luz intensa daquele luar maligno. Os rosnados da fera se abafaram, saindo molhados enquanto ele despedaçava o corpo da garota.
Lentamente, Marcelle deu a volta no bicho, levantou-se e correu o mais rápido que suas pernas fracas e trêmulas permitiram, soluçando tão alto, fazendo tanto barulho enquanto andava que qualquer coisa que estivesse por perto a ouviria.
Assim que se afastou do lugar onde o lobisomem despedaçava Amanda, a floresta voltou a mergulhar no mais profundo breu. A lua havia desaparecido do céu. Quando notou isso, vários minutos depois, Marcelle parou de correr. Não fazia ideia do que estava acontecendo, nem como, nem por que. Só sabia que todos os seus amigos estavam mortos, e que ela seria a próxima.
No meio das trevas, um pensamento lógico surgiu.
Onde estava Thiago?
Pensou em procurá-lo, mas não queria correr o risco de encontrar o lobisomem ou todas as outras coisas que poderiam estar ali.
Sentou no chão, tremendo, chorando e soluçando, lembrando-se das cenas de seus amigos morrendo. Foi aí que conseguiu fazer a ligação.
A Amanda tinha medo de lobisomens. A Thabata tinha medo do demônio de olhos amarelos. Mas o Gabriel não tinha sido morto pela Blood Mary... Bem, pelo menos era o que ela pensava. O Guilherme não tinha inventado a lenda da garota do bosque, ela sabia disso, porque ele tinha contado para ela antes. E a garota havia matado ele. Eles estavam sendo mortos pelos seus maiores medos, pelas lendas que temiam.
E quem ela temia?
Um forte tremor sacudiu seu corpo, todos os pelos se arrepiaram, e logo ela não conseguia parar de tremer. Lágrimas profusas inundaram seus olhos e ela as odiou, pois não conseguia enxergar direito.
Quem ela temia?
Uma lenda pouco conhecida, exatamente o ser que poderia fazer com que tantas lendas aparecessem em uma única noite, que poderia fazê-los pensarem que havia lua numa noite em que ela não estava no céu.
Ela fechou os olhos com força, tremendo mais do que nunca.
Quando os abriu, deu de cara com uma fogueira, já nas brasas. Uma fogueira que ela tinha visto ser acendida enquanto estava escondida no meio da árvores. Ao seu lado, um lampião apagado. Um pouco mais além, um isqueiro jogado no chão, ao lado de uma mochila.
Ela sabia que essa não era a aparência real dele, mas naquele momento o que ela mais temia era um garoto que tinha surgido há pouco tempo na turma deles, era alto magro, usava óculos e tinha cabelos espetados, usava jeans rasgados em um joelho e uma camiseta branca.
Ela ergueu-se, olhando ao redor. Ali estavam Guilherme, Gabriel, Thabata e Amanda, jogados no chão, as gargantas rasgadas, os membros abertos em ângulos estranhos.
Ela temia uma criatura incrível, que se alimentava do medo da pessoas, do pavor, do pânico. Era por isso que fazia com que pensassem que estavam sendo mortos por aquilo que mais temiam. Tornava o medo mais real e intenso.
Marcelle deu um passo em direção à fogueira.
Quem ela mais temia era O Ilusionista.
Às suas costas, uma voz sussurrou em seu ouvido.
“Oi Marcelle”.

Termino de contar minha história. Todos estão me olhando com caras de espanto, boquiabertos, impressionados. Estou sentado um pouco além da luz da fogueira, de forma que meu rosto está meio oculto nas sombras.
- Cara, essa história foi muito boa. – fala um dos garotos do grupo.
- Foi incrível! – completa outro – Nunca tinha ouvido falar d’O Ilusionista.
- Eu também não. – fala Raquel – Você sabe onde a lenda se originou?
Inclino-me um pouco para frente, de modo que meu semblante seja banhado pela luz ondulante.
- Ela se originou em grupos como este, que resolvem se reunir no meio do nada para contar histórias de lendas urbanas que, no fundo, eles acreditam que existem, mas que, por fora, mostram desprezo e desdém. Alguns são discretos, mas é possível ver essas emoções na forma despreocupada com que contam a história, na falta de medo que usam para falar de criaturas malignas. O Ilusionista é como um justiceiro, mata aqueles que zombam das lendas, faz a justiça quando eles próprios não têm como fazer. Ele só está do outro lado, do lado das trevas.
De repente, aconteceu.
Um vento, uma sombra, um farfalhar desconexo como se algo vasto e invisível atravessasse o ar muito rapidamente.
No instante seguinte, tudo voltara ao normal.
Só que, ao contrário da história, todos os presentes ali perceberam isso. E então começaram a perceber as semelhanças: a camiseta e os jeans, os óculos, o cabelo espetado, a magreza.
- Qual o seu nome? – veio a pergunta amedrontada e trêmula de algum deles.
- Quem é você? – outro falou – Nunca te vi antes.
- Vocês ouviram a minha história - tornei a falar, ignorando as perguntas deles - Eu tentei avisá-los. Eu sempre tento avisá-los. Mas vocês nunca me escutam, nunca dão atenção. Sou um ser justo, o que eu posso fazer, então? Vocês que acabam escolhendo isso. Depois de algumas décadas, a pessoa acaba cansando de tentar ajudar. Cansei de avisar.
Sorrio, meus olhos brilham de uma maneira interessante. Todos prendem a respiração, amedrontados. Um uivo distante corta a noite.
Finalmente vem a pergunta certa.
- O... o que... o que é você?
Finalmente.
Respiro fundo.
A fogueira se apaga na mente de todos, o medo preenche o ar.

E então, os gritos.

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